domingo, 20 de junho de 2021

Novíssimo Testamento

 


Disssemos que seria com o corpo. E assim foi: fizemos teologia no feminino plural. Escrevemos com a tinta do suor de nossos 30 anos, e só aceitamos palavras que passassem pelos pelos. Eriçadas, lambidas ou descartadas: queríamos palavras densas, pesadas, arriscadeiras ou inventadas.

Carregamos com prazer imenso palavras novas e velhas, todas testadas, tomadas do chão, paridas, passadas de mão em mão, orgasmizadas e suspensas. Palavras feitas de vassoura, de pouco dinheiro, de roupa no varal e calcinhas ao sol. E fizemos teologia no feminino plural... e não foi o bastante. 

Doeu aprender que palavras negras não saltam de nossa boa vontade mas são esculpidas por teólogas negras no atrito com o arame farpado do racismo. Nos inventamos mediações, mas eram mais desejos. 

Exercitamos a crítica e éramos abandonadas em praça pública para terror nosso e diversão dos teólogos e seus jogos de encaixe. Não foi fácil! 

Matamos o pai, o deus, o senhor, o marido, o patrão e ficamos órfãs só não desistimos porque recebemos 100 vezes mais irmãs e companheiras, e todas as famílias que nos ocorreu. 

Na luta do povo remendávamos nossas alternativas e aprendíamos com as mulheres pobres a indecente tarefa de sobreviver, e resgatar direitos e não deixar que um soco, um tapa e um tiro fossem adereços da vida das mulheres, das jovens e das meninas.  

Éramos vizinhas de mulheres operárias e por muito pouco não nos deixamos seduzir pelas migalhas sistemáticas e exegéticas que nos jogavam embaixo da mesa dos programas de pós-graduação. Tão desigual tudo: socializaram os espaços de estudo... mas nunca criticaram os espaços de fazer teologia: cátedras, editoras, pesquisa... anexadas. 

E dançamos... lembra? A música saia da festa e nos visitava em nossas orações. Aprendemos a rezar com os quadris acesos e o cabelo solto. E cozinhamos refeições fartas e descomplicadas e compartilhamos com a fome a vontade de comer. 

E amamos tanto! Homens e mulheres. Amantes e amigas. E nos encontramos e nos perdemos tantas vezes... e fazíamos questão que fosse inteiro, que fosse generoso e a conhecer nossas arestas erógenas até o fim. O gozo. A boca cheia de prazer e as mãos sedosas de percorrer... o corpo. 

Encarnação e Ressurreição já não eram mais guindastes metafísicos... mas se alimentavam do dia-a-dia da cruz dos povos, da cruz das mulheres e gays, da cruz do povo negro, indígena...povo de rua. 

Luta de classes explicava mas  não interpretava: sem feminismo não tem socialismo – escrevemos na contra capa dos antigos livros. 

O evangelho ia sendo tatuado em nossos corpos grávidos de filhos e filhas, e nos encontrávamos as mesmas e outras celebrando e evitando nossas mães. Eu quis ser mãe algumas vezes. Outras vezes, não quis... e vi nos olhos das amigas e das mulheres da luta que eu tinha em mim o dom, o modo e a força de dizer sim! ou não! 

Lemos textos, escrevemos livros, marchamos em mil passeatas que digitaram nossas teses e suas fragilidades. E amamos tanto. E até mesmo quando doeu ninguém ficou sozinha. Eu não. 

E nos esfregamos terra, óleo, folha, flor... e nos batizamos mil vezes em águas de cheiro e nossos pés criaram raízes de árvores antigas e novas nos deparamos com o corpo do mundo estuprado e domesticado... que nem eu! que nem nós! 

E nas mãos das mulheres sem-terra, camponesas aprendemos quanto vale uma semente: soberania alimentar. E nunca mais foi possível escrever com as dobras do corpo sem soletrar o corpo do mundo. 

Eu ainda não sei dizer tudo como foi mas... foi assim. E hoje, nossos corpos menopausados são mais lentos, mais pesados, mais secos até! E algumas de nós: dói! Muito. O corpo então também é isso: a dor, a doença, a febre, um câncer, a pressão alta, os ossos frágeis... sempre soubemos disso. 

Mas agora nós vivemos isso. E algumas de nós: sofre! Eu. E custa ter que soletrar os odores de tantos hospitais, os choros de perder quem amamos, o abraço que anda tão solitário, e o sangue que já não escorre todo mês do mesmo modo. 

E agora então... nossa teologia vai envelhecer. Já vem envelhecendo: linda e soberana, frágil como sempre soube que era: corpora fluída

Nem mesmo agora na hora da nossa morte vamos dizer o nome de deus em vão. Eu não! Chegamos até aqui sem inventar sistemas filosóficos e teológicos que sobrevivam a nós mesmas... não vai ser agora. 

Vejam! meus substantivos e adjetivos menopausados... envelheceram. 

Aqui os verbos no subjuntivo do futuro já não gritam mais... mas pulsam! Tanta coisa mudou: o pescoço rasgado anuncia as vésperas;  um governo de merda encurta os dias e alonga a noite. E eu só queria amanhecer na alegria geral desde abajo a la izquierda.

Tanta coisa ainda por fazer... e atrás de nós, bem perto esta mulher jovem e outras tão lindas que olham pra mim com confiança e se divertem com as palavras escritas na pele da minha geração. 

Elas nos tocam com palavras novas, algumas que eu não sei pronunciar mas gosto de ouvir e me emociono. Antes de nós, nós, depois de nós. A história é generosa e imprevisível. Aqui estamos nós: ainda!

" Como amantes de dEus, nós caminhamos juntas de todas as formas: em muita perseverança; em sofrimentos, privações e tristezas; em abortos, prisões e tumultos; em trabalhos domésticos árduos – operárias e camponesas -  noites sem dormir – mães aflitas e trabalhadoras do sexo -  e jejuns; em pureza e inteiras, no conhecimento parido, na paciência impaciente e na bondade libertária; no espírito santo e no amor sincero; na palavra da verdade e no poder de dEus; com as armas da justiça, quer de ataque, quer de defesa; por honra e por desonra; decentes ou indecentes, por difamação e por boa fama: tanto faz!; enganadoras sendo verdadeiras; desconhecidas, mas com a casa cheia; morrendo, mas eis que vivemos; espancadas, mas não mortas: enfrentamos!; entristecidas, mas sempre alegres; pobres, mas enriquecendo a muitas; nós não temos nada... mas nós possuímos tudo."

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2 Coríntios 6:4-10

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