sábado, 20 de fevereiro de 2021

Agroerotismos latinoamericanos: a cabruca e a milpa

 






As mulheres da Teia Agroecológica dos Povos da Bahia (Brasil) se reunem para rodar antigas danças, torés e batuques persistentes que não desistiram de encantar o território do sul da Bahia e seus seres. Encantar aqui é povoamento de memória, de ancestrais não derrotados pela morte, a e o esquecimento. Encantar a terra, a agricultura, o trabalho e a comida. O ritmo e a beleza dos corpos na dança e na reza, nos jogos e nas música são expressões dos modos de agroecologia, uma relação com a terra, a semente, a água, o sol e os pequenos animais.



A Teia dos Povos foi criada a partir dos diálogos continuados da I Jornada de Agroecologia da Bahia, realizada em 2012 e tem o papel de traçar a agenda de ações anuais que auxiliam no desenvolvimento, empoderamento e emancipação das comunidades integradoras. Participam segmentos como acampamentos, assentamentos, quilombolas, indígenas, mestres e lideranças de tradição oral, pequenos/as produtores/as, estudantes, pesquisadores/as e profissionais em Agroecologia.[1]





Todo o sul da Bahia é habitado por divindades plurais: Encantados e Encantadas, Orixás e Caboclas. Ali no litoral, entre o mar e a mata, as primeiras comunidades nativas se encontraram com os invasores faz 515 anos. Tanta desmesura nos modos de tomar a terra, arrancar a mata e escravizar as gentes des-evangelizou para sempre o povo do lugar e tornou seus deuses e deusas mais belos e necessários. E o evangelho se mistura discretamente com as danças e rodas de conversa.

Esta é uma história de radical permanência de povos e seus modos de crença na luta pela terra e o território. No círculo. Na roda. Nada se perde. Somos Cabruca: o sistema de mata e vida dos povos tradicionais do sul da Bahia.

A Cabruca é tudo misturado de árvores grande e antigas com formas de plantio recentes que combinam o cacau com as frutas, a horta e as matas que ainda restam no litoral do Brasil. Da Cabruca e na Cabruca o povo da mata retira seu sustento, mantem seus gostos e sabores e se agrada da vida: uma agricultura que convive com a paisagem, que brota a roça no meio dos insetos, das flores e de raízes necessárias.

Pertencer a um lugar é fazer parte dele, é ser a extensão da paisagem, do rio, da montanha. É ter seus elementos de cultura, história e tradição nesse lugar. Ou seja, em vez de você imprimir um sentido ao lugar, o lugar imprime um sentido à sua existência. [2]

O que junta as mulheres no encontro da Teia[3] são as práticas e debates sobre agroecologia num cenário político difícil e conflituoso e num processo de avanço da florestas artificiais de eucaliptos, pastagem para o gado, mineração e empreendimentos turísticos. Contra a monocultura económica, política e cultural as mulheres da Teia dos Povos afirmam a agroecologia: trocam sementes, compartilham metodologias de plantio, desenvolvem técnicas e aprendem o novo misturado com o ancestral.

Entre uma conversa e outra sobre agroecologia encontrávamos sobre a sombra das antigas árvores e suas pluralidades. Eróticas.

O erótico é uma mudança da ordem mono-cultivada da vida e da sexualidade... um confronto com a racionalidade falocrática do capitalismo que é baseada e focada na reprodução ou na realização exclusiva de seu próprio desejo: mais-valia.

O monocultivo cria fileiras iguais de plantas iguais; a Cabruca é a tecnologia de plantio em que o cacau e outras espécies convivem com a floresta, se alimentam da sombra e dos nutrientes naturais de uma paisagem que não exige uniformidade ou "limpeza".

É aqui que a indecência deve acontecer: no modelo de interpretação da relação cultura-natureza nos modos de se fazer agri-cultura. A agricultura é queer ... sempre foi! Quanto mais diverso, mais resistente, mais misto e coexistente com todos os seres - desde rio, sol, floresta, clima, chuva, sereno, animais, vento - mais capacidade para a vida. Tudo isso para colocar pedaços do mundo na boca e sentir o gosto, cheirar os cheiros e tocar as texturas do que foi esfregado no chão e se fez comida: é queer! da semente à merda e os restos que adubam a terra: é cultura.

 

A “milpa” mexicana e centro-americana



Outro modo latino-americano de queer-agroecologia é a “milpa”: um conceito complexo dos povos indígenas mexicanos, pois abrange muitas dimensões, desde a agricultura, as crenças, arte e também a nutrição[4]. Sabe-se que “milpa” é uma palavra que vem do Nahuatl: “milli, campo e pão, acima; em cima do lugar”. É constituído pela tríade mesoamericana: feijão, milho e abóbora, três dos produtos ancestrais essenciais que crescem juntos, misturados. O uso desses elementos foi encontrado em escavações que datam de 2.000 a 6.000 anos.

Aqui nos parece oportuna uma analogia com a Pedagogia da Milpa ao destacar que a dimensão educativa da luta política na defesa do território e de uma matriz agroecológica da produção constitui um processo que articula a apropriação pedagógica da intersubjetividade e da racionalidade própria da cosmovisão indígena e da abordagem linguístico-cultural no âmbito das comunidades.[5]

Os elementos que o compõem a milpa não são apenas usados ​​como uma base importante de alimentação, mas são essenciais em termos médicos e rituais, pelo que oferecem de antigo e novo. A tríade mesoamericana é um "mundo" complexo, porque a forma como se combina o que é semeado, faz com que cada um dos seus elementos contribua com algo diferente mas igualmente nutritivo e rico a este conjunto. Além disso como cultura, é muito mais sustentável do que só plantar milho: na milpa tem alimento o ano todo e a terra se nutre mais. Afirmam as mulheres[6]

En nuestras investigaciones y actividades, empleamos metodologías participativas que favorecen el intercambio de conocimiento, así como procesos de emancipación, auto-reconocimiento y visibilización de los saberes y capacidades  de las mujeres: desde el diseño y manejo de huertos comunitarios y patios familiares; el cultivo, cosecha y recolección de alimentos silvestres, hierbas y animales; la creación y coordinación de  organizaciones y proyectos colectivos que fomentan la concientización y educación en la agricultura sustentable y el cuidado del medio ambiente; hasta el conocimiento especializado en las prácticas de manejo de maíces nativos y sus canales de comercialización... Por eso, decimos junto a las mujeres zapatistas que ¡nuestra lucha es por la vida! Y agregamos que ¡sin mujeres no hay agroecología! Pero, también, que ¡sin agroecología no hay feminismo!, porque no podemos cuidar de nuestros cuerpos y de la Madre Tierra con agrotóxicos y semillas no nativas. [7]

Na “milpa” cultivam-se também quelite, pimenta e alguns vegetais ou plantas medicinais. Nas margens também existem árvores frutíferas, maguey e até nopales / cactos, que servem para proteger. Estes variam de região para região, pois se nutrem do que existe em cada ambiente. Em alguns lugares você pode até encontrar mamão, chile ou jamaica.



“[...] o mais singular na história do milho, como eixo da comida mexicana, é que deu origem a um complexo sistema cultural que deu harmonia e recirculação da relação humana com o meio ambiente. A milpa é sua concretização e conferiu destino aos usos agrícolas, à nutrição e à celebração de festas, cerimônias e rituais; criou técnicas, ferramentas e procedimentos que ampliaram e facilitaram os usos ótimos deste cereal e conferiram-lhe uma poderosa força de coesão social. a planta da convivência. Com ela crescem outras que, juntas, proporcionam uma alimentação básica na vida das comunidades, conferindo o sentido de reciprocidade e solidariedade compartilhada ”.[8]

Sementes e plantas parecem lugares pacíficos e domesticados, mas quem vive da luta pela defesa das sementes crioulas sabe que são sempre iguais... e tão diferentes: nunca com uma identidade definitiva! Essa diversidade se deve à alta capacidade de dispersão das variedades crioulas, que se deve à troca constante de sementes entre o campesinato e povos tradicionais; aos cruzamentos contínuos que se realizam entre as variedades que vivem desta ciranda aleatória que modifica as características e que geram novas variedades.

É necessário afiar as teorias feministas e queer de ponta para a luta contra os modelos hegemônicos de exploração da natureza; é preciso rever nosso imaginário e superar as paisagens heteronormativas e fixas que temos da natureza; precisamos de uma ecologia queer e feminista. Uma agricultura erótica.

 

 

 fonte arte -

https://www.pinterest.de/pin/530298924853589235/

http://jornadadeagroecologiadabahia.blogspot.com/2015/08/i-encontro-de-mulheres-e-agroecologia.html

http://visionagroecologica.blogspot.com/2017/12/las-tres-hermanas-tu-huerto-sostenible.html

 

 

 

BIBLIOGRAFIA

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ALT-HAUS REID, Marcella, Indecent Theology: Theological Perversions in Sex, Gender and Politics,  London, Routledge, 2000

 

BAEZA, Camila, ALMEIDA, Rejane, Mujeres y agroecología: prácticas y saberes de mujeres integrantes de la articulación tocantinense de agroecologia, in: http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/ActaSciHumanSocSci/article/download/51160/751375150023/

 

BAUDRILLARD, Jean. Da Sedução. Campinas: Papirus, 1991

 

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GAARD, Greta Claire. Rumo ao ecofeminismo queer. Rev. Estud. Fem.,  Florianópolis,  v. 19, n. 1, p. 197-223, Apr.  2011, in: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2011000100015&lng=en&nrm=iso (acesso 29/9/2020)

 

GABRIEL, Alice. Ecofeminismo e ecologias queer: uma apresentação. Rev. Estud. Fem.,  Florianópolis ,  v. 19, n. 1, p. 167-174,  Apr.  2011, in: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2011000100013&lng=en&nrm=iso (acesso 28/9/2020)

 

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[1] http://teiadospovos.redelivre.org.br/a-teia/

[2]Ailton Krenak, Sempre estivemos em guerra, in: https://www.goethe.de/ins/br/pt/kul/fok/zgh/21806968.html (acesso 29/8/2020)

[3] Confira o encontro das Mulheres da Teia de 2020 in: https://m.youtube.com/watch?v=nUYZ-pGpl40 (acesso 28/8/2020)

[4] La milpa, mujer de tierra, agua y cana, https://www.youtube.com/watch?v=aygCy3Nj0lI (acesso 28/8/2020)

[5] BARBOSA, Lia Pinheiro; ROSSET, Peter Michael. EDUCAÇÃO DO CAMPO E PEDAGOGIA CAMPONESA AGROECOLÓGICA NA AMÉRICA LATINA: APORTES DA LA VIA CAMPESINA E DA CLOC. Educ. Soc., Campinas ,  v. 38, n. 140, p. 705-724,  July  2017, in: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010173302017000300705&lng=en&nrm=iso (acesso 28/8/2020)

[6] Alianza de las Mujeres en Agroecología AMA-AWA, https://www.ecosur.mx/sin-mujeres-no-hay-agroecologia/



[8] GARCIA, C., La Milpa, in: http://web.ecologia.unam.mx/oikos3.0/images/Pdfs/2017-01.pdf (accesso in 29/8/2020)


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