Cássio Murilo Dias da Silva, PUC
RS, Brasil
1 Panorama histórico-literário
O Antigo Testamento
levou aproximadamente mil anos para ser escrito. A cada nova situação
histórica, os fatos do passado e do presente são relidos, reinterpretados,
recontados. Por isso, é necessário pontuar alguns acontecimentos importantes e,
neste arco de tempo, situar o processo de formação dos livros bíblicos. Nesta
linha do tempo, todas as datas são anteriores à era cristã ou comum (isto é,
aC):
§ 1000-931: Império davídico-salomônico
§ 931: morte de Salomão
§ Separação dos dois reinos irmãos e
início de uma história paralela: Norte (Israel ou Efraim) e Sul (Judá)
§ 883: ressurgimento da Assíria como
grande potência militar
§ 722 (ou 721): invasão Assíria e
destruição do Reino do Norte (Israel/Efraim)
§ 722/721-586: história do único
reino independente, o Sul (Judá)
§ Gradual enfraquecimento da Assíria
e ressurgimento da Babilônia
§ 640-609: reinado de Josias (reforma
política e religiosa)
§ 597: primeira deportação para a
Babilônia
§ 586: invasão de Jerusalém pelos
babilônicos, destruição do Templo, segunda grande deportação para a Babilônia e
início do período chamado de “exílio”
§ 586-537: exílio na Babilônia
§ 555: início da campanha de Ciro,
rei dos medos e dos persas
§ 539: entrada vitoriosa de Ciro na
Babilônia
§ 538: edito de Ciro, autorizando os
judeus deportados a retornarem a Jerusalém
§ 537: início do período da
reconstrução de Jerusalém e do Templo
§ 333: Alexandre o Grande conquista o
Antigo Oriente Próximo (Oriente Médio)
§ 323: morte de Alexandre o Grande na
Babilônia; divisão do seu império entre os diádocos
§ 167-164: Antíoco IV Epífanes inicia
um processo de helenização obrigatória
§ Revolta dos Macabeus: guerra,
perseguição e mártires
§ 63: Roma conquista o Oriente Médio
§ 40-4: Reinado de Herodes o Grande
§ 6 (aC!): Nascimento de Jesus
De todas essas datas,
a que tem maior impacto na história e na literatura do AT é o ano de 586, que
marca o início do período do exílio.Em termos de história civil e política, o
exílio marca o fim da monarquia e da independência. Não só isso. Também a
religião é afetada e, por conseguinte, os textos que formarão a Sagrada
Escritura.
A cada novo
importante acontecimento, há uma nova etapa na história de Israel/Judá. Os
fatos do passado são recontados e explicados à luz da nova situação social,
histórica e política, para dar sentido ao presente e abrir a esperança do
futuro.
Desde os tempos do
império davídico-salomônico até os tempos da reconstrução pós-exílica (períodos
assírio, babilônico e persa), surgem e são amalgamadas diversas tradições orais
e escritas. O resultado é a obra historiográfica-legislativa do Pentateuco
(também chamado de Torá), um relato mais ou menos linear das origens (criação,
queda, dilúvio), dos patriarcas (Abraão, Isaac, Jacó/Israel, José e seus
irmãos), do êxodo e da travessia do deserto.
Outra tradição
historiográfica assume a tarefa de narrar os eventos desde a conquista de Canaã
até o exílio, passando pelo período dos juízes, da monarquia unida e dos reinos
divididos.
Com a consolidação da
monarquia, consolida-se também o profetismo, que perdura até os anos da
reconstrução e talvez além. Nem todos os profetas são conhecidos por seu nome,
nem todos escreveram. Não obstante, muito da mensagem desses mensageiros
divinos foi conservada, graças a uma intensa atividade literária, empreendida
por eles mesmos ou por seus discípulos.
As mudanças
históricas e políticas, tanto na sociedade de Judá como no cenário
internacional, levam ao gradativo desaparecimento da profecia, deixando espaço
para dois outros movimentos literário-religiosos de extrema importância e
vitalidade: a tradição apocalíptica e a tradição sapiencial.
A apocalíptica
impregna já alguns dos livros proféticos canônicos. Mas sua principal produção
literária não pertence ao cânon bíblico. Diferentemente, a tradição sapiencial
foi amplamente acolhida no cânon, com escritos que refletem sobre o sentido da
existência humana.
Os escritos de
diversas tradições poéticas também foram assumidos no cânon do AT. Igualmente
tradições historiográficas de menor envergadura, que produziram novelas
edificantes e livros de aventura, todos refletindo os desafios que as
circunstâncias sociais e históricas impunham às comunidades do povo de Deus,
não só em Jerusalém, mas também fora da Judeia/Palestina.
Panorama
teológico-literário
2.1 Muitas teologias no AT
Cada um dos livros
que temos hoje levou muito tempo para chegar à sua forma atual e, na maioria
dos casos, não foi obra de uma única pessoa. Por isso, é necessário falar não
de teologia, e sim de teologias do Antigo
Testamento: a teologia da chamada escola deuteronomista é
diferente da teologia de um grupo normalmente chamado de javista; a
teologia de Jó é totalmente diferente da teologia de Sirácida (Eclesiástico).
2.2 Dois Antigos Testamentos
Um conjunto de livros
que formam o que normalmente chamamos de Antigo Testamento já estava completo
antes do ano 200 aC Por ter sido escrito em hebraico (uma mínima parte em
aramaico) é chamado de Bíblia Hebraica e tem três divisões: Torah (Lei),
Nebi’îm (Profetas), Ketubîm (Escritos). É comumente chamado de TaNaK (palavra
formada pela primeira letra do título de cada parte).
Em torno do ano 180
aC, foi feita a tradução da Bíblia Hebraica para o grego. Mas essa não foi
somente uma tradução: houve também adaptações e acréscimos, tanto de partes
como de livros inteiros. A tradução grega é conhecida como Setenta ou
Septuaginta e indicada pelas letras LXX (setenta em algarismos romanos).
Entre a Bíblia
Hebraica e a LXX, portanto, há várias diferenças além da língua: ambiente
histórico, social, político, geográfico; adaptações e acréscimos; livros novos
na LXX (nem todos no cânon de nossas Bíblias); agrupamento e ordem dos livros.
As bíblias católicas
se diferenciam das bíblias protestantes/evangélicas porque, além dos livros da
Bíblia Hebraica, incluem também alguns dos livros novos que foram acrescentados
na LXX. São eles: Baruc, Eclesiástico (Sirácida), Sabedoria, Tobias, Judite, 1
e 2 Macabeus. Também os livros de Daniel e Ester receberam acréscimos,
presentes nas bíblias católicas, mas não nas bíblias protestantes/evangélicas.
Cumpre enfim lembrar
que a LXX contém ainda uma série de livros que não foram assumidos pelo cânon
cristão católico: 3 e 4 Macabeus, Odes, Salmos de Salomão e 4 Esdras.
2.3 Atual divisão dos livros do AT
Nas edições cristãs
da Bíblia, a ordem e o agrupamento dos livros não seguem exatamente a Bíblia
Hebraica nem a LXX. Antes, os livros foram agrupados e sequenciados conforme
vários critérios, tais como a importância do livro ou do bloco de livros e a
cronologia dos eventos narrados. Nessas Bíblias é possível distinguir os
seguintes grupos:
- Torá (= Lei) ou Pentateuco
- Livros históricos
- Livros sapienciais e livros
poéticos
- Livros proféticos
3 Torá ou
Pentateuco
Gênesis, Êxodo, Levítico,
Números e Deuteronômio formam um complexo narrativo-legislativo. Sob o aspecto
narrativo, relata-se uma história linear: as origens do mundo e da humanidade
(Gn 1-11), a história dos patriarcas Abraão, Isaac e Jacó (Gn 12-36), a
história de José (Gn 37-50), o êxodo do Egito (Ex 1-15), a Aliança no Sinai e a
travessia do deserto (Ex 16-Nm 21), acampamento em Moab e últimos eventos antes
de entrar na Terra Prometida (Nm 22-Dt 34).
Sob o aspecto
legislativo, os cinco primeiros livros da Bíblia contêm um amplo conjunto de
códigos legislativos, inseridos na narrativa linear anteriormente descrita.
Destacam-se: o Decálogo (Ex 20,2-17, reelaborado em Dt 5,6-21); o Código da
Aliança (Ex 20,22-23,19); a Lei de Santidade (Lv 17-26) e o Código
Deuteronômico (Dt 12-26).
Este complexo
narrativo-legislativo foi longamente amadurecido e composto com materiais
provenientes de vários grupos, ideologias e épocas. Desde o século XVIII
surgiram várias opiniões acerca da formação do atual Pentateuco, mas foi a
teoria documentária de Julius Wellhausen a que se impôs desde a metade do
século XIX. Segundo essa teoria, o texto atual do Pentateuco é o resultado da
fusão de quatro fontes em um conjunto mais ou menos harmonioso. Essas quatro
fontes são:
– Javista (J):
desde Gn 2,4 chama Deus de “Javé”. O local sem dúvida é Jerusalém (Reino do
Sul), mas a datação é discutível: no século X aC, durante o reinado de Salomão,
ou no século VII aC, sob Josias? Ou ainda no século VI aC, mais próximo do
final da monarquia?
– Eloísta (E):
chama Deus de “Javé” somente após Ex 3,14. Antes disso, Deus é chamado de
“Elohim”. Entre os séculos IX e VIII aC, no Reino do Norte.
– Sacerdotal (P,
do alemão, Priestercodex): preocupa-se principalmente com aspectos
rituais. Durante o exílio na Babilônia (587-537 aC) e pouco depois.
– Deuteronomista (D):
compôs o livro do Deuteronômio como introdução à obra historiográfica que vem a
seguir (Obra Histórica Deuteronomista). Vários estratos redacionais, refletindo
os diferentes momentos da história de Israel (período assírio, período
babilônico, exílio, período persa).
Cada uma dessas
fontes reflete um período histórico e uma ideologia religiosa. Nenhuma delas
tem a intenção de escrever um relato jornalístico, e sim uma história teológica
(catequética), desde as origens até as vésperas da entrada na Terra Prometida.
Não obstante
críticas, revisões e correções, a teoria documentária de Wellhausen continuou
soberana até a década de 1970, quando seus pressupostos básicos foram
fortemente questionados. Desde então, buscaram-se outras explicações para a
composição do Pentateuco. Três foram as tendências dessas novas explicações:
a) Rejeitar
sumariamente a leitura diacrônica (método histórico-crítico) e, tendo como base
teorias literárias recentes, assumir unicamente a leitura sincrônica.
b) Assumir uma
datação recente dos textos do Pentateuco e, deste modo, eliminar as fontes mais
antigas da teoria documentária, isto é, a Javista e a Eloísta.
c) Substituir o
modelo de documentos pelo de redações ou reelaborações
sucessivas, o que leva a vários modelos, muitas vezes fragmentados.
Não raro, retorna-se,
de um modo ou de outro, às intuições de Wellhausen, ainda que apenas
conceitualmente. Fala-se, por exemplo, de um Proto-Pentateuco
pré-sacerdotal, de um sacerdotal básico, de um Deuteronômio
deuteronomista, de releituras pós-deuteronomistas e pós-sacerdotais.
Na trilha das leituras sincrônicas, fala-se de “Hexateuco” (de Gn a Js, isto é,
da criação à conquista da Terra), bem como de um “Eneateuco” (de Gn a 2Rs, isto
é, da criação à perda da Terra).
Esta multiplicidade
de opiniões demonstra a complexidade da questão sobre a formação do Pentateuco
e quão longe estamos de um novo consenso acerca de uma explicação que, como a
teoria documentária clássica de Wellhausen, constitua um paradigma que se
imponha por sua solidez e aplicabilidade.
4 Livros
históricos
O termo “históricos”
deveria vir entre aspas, uma vez que o conceito que os autores bíblicos tinham
de obra historiográfica é muito diferente do que temos hoje.
4.1 Obra Histórica Deuteronomista e o livro de Rute
Josué, Juízes, 1-2
Samuel e 1-2 Reis narram de modo linear uma história complexa e cheia de
reviravoltas: da conquista da Terra Prometida à perda dessa mesma terra. Na
Bíblia Hebraica esses livros são chamados de “Profetas Anteriores”. Trata-se de
uma obra historiográfica – a Obra Histórica Deuteronomista (OHD) – que recolhe
material de outros escritos (normalmente, registros da corte) e também material
inédito.
Normalmente fala-se
de várias camadas redacionais, amalgamadas durante duzentos anos
aproximadamente (entre 650 e 450 aC). A autoria é atribuída à chamada escola
deuteronomista ou simplesmente o deuteronomista. Esse nome
justifica-se pelo fato do livro do Deuteronômio funcionar como o portal de
entrada para a história narrada a seguir e também oferecer os critérios para
julgá-la.
O período da história
de Israel coberto pela OHD começa com a confederação de tribos (Josué), passa
pela conquista da terra (Juízes) e pela monarquia unida (Samuel), e culmina com
a separação dos reinos e a destruição de cada um deles (Reis). É um relato sob
o ponto de vista religioso e tem a finalidade de mostrar que a história vai se
deteriorando sempre mais, até chegar ao limite da infidelidade, não deixando
alternativa a Yhwh, exceto mandar a catástrofe para punir seu povo e, deste
modo, purificá-lo. Assim, a OHD quer não só explicar por que Yhwh puniu seu
povo com o exílio, mas também apontar os caminhos para superar a crise e reconstruir
a comunidade, desta vez mais fiel à Aliança.
Assim progride a
história na OHD:
- Deuteronômio: a sociedade
ideal, conforme a Lei de Yhwh.
- Josué: o povo fiel, cumpridor
da Aliança e da Lei.
- Juízes: fidelidade e
infidelidade se alternam, num ciclo contínuo: pecado, castigo,
arrependimento, libertação
- 1-2 Samuel e 1-2 Reis:
infidelidade institucionalizada; o primeiro a ser infiel é o rei.
As edições cristãs da
Bíblia seguem a LXX e inserem o livro de Rute entre Juízes e Samuel. Rute[1] é a bisavó do rei Davi e, para
preparar a entrada em cena desse grande rei de Israel, a novela que narra a
edificante história de Rute é inserida antes do livro que narra a passagem do
período dos juízes para o período da monarquia.
4.2 Obra Histórica do Cronista
Um conjunto de quatro
livros é atribuído a um autor normalmente denominado cronista, uma
vez que os dois primeiros livros de sua obra recebem o nome de “Crônicas”.
Esses dois escritos recontam o que fora narrado nos livros da Torá e dos
Profetas Anteriores (Obra Histórica Deuteronomista) à luz da nova situação
vivida pela comunidade judaíta no período do Segundo Templo. Essa releitura da
Lei e dos Profetas Anteriores termina com o decreto de Ciro autorizando a volta
para Jerusalém dos judeus deportados da Babilônia. Uma versão ligeiramente
modificada desse mesmo decreto inicia o livro de Esdras, deixando a entender
que todo o relato de Crônicas funciona como um resumo que prepara os dois livros
seguintes, Esdras e Neemias, que narram as várias etapas da repatriação, da
reconstrução dos muros e do templo de Jerusalém, da restauração do culto e da
reorganização da comunidade.
4.3 Novelas edificantes e livros de aventura
Completando a série
de livros narrativos do Antigo Testamento, as edições cristãs da Bíblia
apresentam livros que preenchem o período de tempo que cobre a dominação persa,
a dominação greco-helenista e os prenúncios da dominação romana.
O livro de Ester chegou
a nós em duas versões – hebraica (mais curta) e grega (mais longa) – e narra a
história de uma judia deportada que, como um “José feminino” chega ao poder na
Pérsia e sua ação é decisiva para salvar seu povo.
As bíblias católicas
acrescentam também livros escritos em grego: Tobias, Judite e 1-2 Macabeus.
Tobias é uma
narrativa popular, uma novela edificante que conta as peripécias de um judeu
fiel em meio a dificuldades e perigos a serem enfrentados em terra pagã. Graças
a sua retidão ética, o protagonista – Tobias – experimenta a ação salvadora da
providência divina.
Judite é também uma
novela popular, mas do tipo heroico: uma comunidade judaica perseguida esmorece
e perde a esperança. Surge então uma viúva, Judite (“a judia” por excelência),
que, fortalecida por sua fé, arrisca a própria vida e salva seu povo. Como uma
Ester da periferia e armada com a espada, Judite encarna a confiança nas
promessas de Deus e derrota o inimigo poderoso e ambicioso.
Ester, Tobias e
Judite são, pois, narrativas exemplares por meio das quais o judaísmo transmite
suas convicções acerca da identidade do povo judeu, do comportamento a ser
assumido em meio às crises e da fidelidade diante do impacto causado pelo
helenismo.
Nessa mesma linha de
aguerrida fidelidade, apresentam-se os dois livros canônicos dos Macabeus, com
narrativas de episódios ambientados no período da helenização forçada
empreendida por Antíoco IV Epífanes (175-164 aC).
O primeiro livro é um
relato de heróis: uma família de judeus piedosos se recusa a aceitar a
imposição religiosa e deflagra uma guerra contra os dominadores helenistas e a
aristocracia judaica que havia aderido ao imperialismo cultural e religioso.
O segundo livro
(provavelmente anterior ao primeiro) é mais religioso, reflete o sentimento dos
judeus piedosos e descreve os testemunhos da fé dos que, mesmo diante da
guerra, da perseguição e da morte, não renegam a religião judaica. O livro traz
cenas de martírio e também de ferozes batalhas. 2 Macabeus elabora uma teologia
da história e também uma explícita profissão de fé na imortalidade e na
ressurreição dos justos.
5 Livros
sapienciais e livros poéticos
Os livros sapienciais
propriamente ditos são cinco: Provérbios, Jó, Qohélet (Eclesiastes), Sirácida
(Eclesiástico) e Sabedoria. Cântico dos Cânticos e Salmos são livros poéticos.
A busca da sabedoria
e do sentido da vida não foi um fenômeno exclusivo do povo bíblico nem por ele
iniciado. Antes, trata-se de uma indagação comum, presente também nas culturas
vizinhas (Egito, Mesopotâmia, Ugarit). A palavra sabedoria abrange
não só os conhecimentos científicos, mas também e principalmente a capacidade
de encontrar as soluções adequadas para todo tipo de problema: agricultura,
economia, relacionamentos sociais, família etc.
Os livros sapienciais
bíblicos podem ser lidos e interpretados sob o pano de fundo da chamada teologia
da retribuição. Trata-se de uma doutrina que pode ser assim
esquematizada:
- justo = sábio = abençoado
(rico, saudável, feliz)
- injusto = insensato =
amaldiçoado (pobre, doente, infeliz)
Em outras palavras,
“aqui se faz, aqui se paga”!
Todavia, os autores
bíblicos não são unânimes sobre a validade desta crença. À pergunta “a teologia
da retribuição funciona?”, eis as respostas encontradas nos livros sapienciais bíblicos:
- Provérbios e Sirácida: “Sim,
funciona! E a vida humana tem sentido.”
- Jó e Qohélet: “Não, não
funciona! E a vida humana é sem sentido.”
- Sabedoria: “Funciona, mas só
na vida após a morte! E o sentido da vida humana está na felicidade
extraterrena.”
Nas edições cristãs
da Bíblia, entre os livros sapienciais estão inseridos dois livros poéticos:
Salmos e Cântico dos Cânticos.
Na Bíblia Hebraica, o
livro dos Salmos é denominado Tehillim, isto é, louvores. O título
“salmos” vem da LXX, que o denomina Psálmoi, isto é, cantos para
serem executados ao som de um instrumento de corda, que em grego se diz psaltérion.
Esse último termo grego passou a designar o livro todo, como uma coleção de
hinos, louvores, cantos. Na verdade, porém, o livro é uma coleção de coleções:
150 peças literárias de vários tamanhos, estilos e gêneros (súplicas,
lamentações, poesias doutrinais, hinos e louvores).
O Cântico dos
Cânticos é também uma coletânea de poesias ou cantos de amor, nos quais se
concentram as várias faces do desejo e da paixão: a descrição da pessoa amada,
a saudade, o anseio, o prazer etc. O Cântico elabora uma teologia do amor
humano: mais do que um sentimento, o amor é uma realidade intrinsecamente boa e
que justifica a si mesma, que é fim em si mesma. Isso, porque o amor humano
inspira-se no amor divino e é parábola dele, pois revela como Deus nos ama: com
paixão, ansiedade, alegria, prazer, fúria.
6 Livros
proféticos
A palavra profeta vem
do grego pro-fetés e significa “alguém que fala no lugar de
outro”, o porta-voz. Nesse sentido, vários personagens são eventualmente
chamados de profetas ao longo da Bíblia: Abraão, Moisés, Davi. Todavia, o termo
é mais propriamente aplicado a homens e mulheres que assumem o papel de
mediadores entre Deus e a raça humana.
O fenômeno da
profecia não é exclusivo de Israel. No mundo antigo, tal como hoje, é
facilmente confundido com a capacidade de enxergar o futuro e prever os
acontecimentos. Mas esta não é a única nem a principal atividade profética. A
nomenclatura na Bíblia Hebraica é fluida e deixa entrever uma evolução no
conceito do que significa agir como mediador: vidente, visionário, homem de
Deus, profeta. Mais ainda, assinala também uma evolução dos meios de
comunicação: visões; êxtase, possessão e transe; palavras e oráculos.
Os profetas bíblicos,
portanto, não devem ser confundidos com adivinhadores do futuro. Eles não
enxergam o futuro, mas sim o presente: observando as estruturas sociais e o
comportamento individual das pessoas, o profeta emite um juízo, se aquela
sociedade/pessoa caminha de acordo com a Lei de Yhwh ou não. Em caso
afirmativo, aquela sociedade/pessoa pode ter esperança; em caso negativo, o que
se antevê é a catástrofe.
6.1 Profetas não escritores e profetas escritores
Em termos literários,
os profetas podem ser divididos em dois grupos: os profetas não escritores e os
profetas escritores ou clássicos.
Como o próprio nome
diz, o termo profetas não escritores designa os profetas aos
quais não foram atribuídos livros na Bíblia. Há uma longa lista de profetas não
escritores, cuja atividade está principalmente descrita nos livros de Samuel e
Reis. Os mais importantes são Elias e Eliseu; mas há também: Natã, Gad, Aías de
Silo, Miqueias ben Yemla, Hulda (mulher) e vários outros. E, é claro, o próprio
Samuel é qualificado como “último juiz e primeiro profeta”.
Os profetas
escritores (ou profetas clássicos) constituem o grupo mais famoso; todavia, não
formam o grupo mais numeroso. Na Bíblia Hebraica, são apenas quinze livros
proféticos: os três maiores (Isaías, Jeremias, Ezequiel) e os doze menores
(Oseias, Joel, Amós, Abdias, Jonas, Miqueias, Naum, Habacuc, Sofonias, Ageu,
Zacarias, Malaquias). As edições cristãs, todavia, seguem o arranjo da Bíblia
Grega (LXX): após Jeremias, acrescentam-se os livros de Lamentações e de Baruc;
após Ezequiel, o livro de Daniel, com os acréscimos gregos.
6.2 Profetas maiores e profetas menores
A qualificação
“maiores” e “menores” não é devida à importância nem ao período de atuação
desses profetas. É motivada única e exclusivamente pelo tamanho dos livros e,
por isso, deveria ser rejeitada. Em lugar de “profetas menores”, o mais correto
é falar de “o livro dos Doze Profetas”.
Ficaram fora da lista
acima: Baruc e Daniel. Baruc é um profeta cujo livro encontra-se somente na LXX
e que por alguns é identificado com seu xará Baruc, o secretário de Jeremias.
Quanto a Daniel, seu livro é um apocalipse e por isso na Bíblia Hebraica está
entre os “Escritos”.
Quando se fala de
“literatura profética”, é óbvio que se fala de profetas escritores. Mas cada um
dos livros proféticos de nossas bíblias possui uma história redacional bastante
complexa. Em primeiro lugar, a ordem dos livros não equivale à ordem
cronológica que os profetas atuaram: Oseias é posterior a Amós e, no entanto, o
livro de Amós está depois dos livros de Oseias e de Joel (cujo período de
atividade ainda é causa de polêmica). Segundo, há também questões referentes à
autoria dos livros proféticos. Malaquias, por exemplo, é uma palavra que
significa “mensageiro de Yhwh”: trata-se de um nome praticamente inventado para
atribuir a ele o último livro dos Doze Profetas. E há trechos também em Isaías
e em Zacarias (além do próprio Malaquias), cujos verdadeiros autores são
anônimos, sem falar em Jonas, que não é o autor, e sim o protagonista do livro
que leva seu nome.
6.3 A mensagem dos profetas
No que se refere à
mensagem dos profetas, ela está ligada ao período histórico e ao lugar em que
exerceram sua atividade. O marco fundamental é o exílio (586-537). Este período
de cerca de cinquenta anos divide a história do povo de Deus em um
“antes-durante-depois” que reflete nitidamente na mensagem dos profetas,
principalmente os profetas de Judá (Reino do Sul).
De modo absolutamente
sumário, é possível sintetizar assim a mensagem dos profetas escritores:
- antes do exílio:
“Convertam-se!”
- durante o exílio: “Coragem!”
- após o exílio: “Vamos nos
unir!”
Cronologicamente,
assim é possível situar os profetas escritores:
a) em Israel ou
Efraim (Reino do Norte):
- antes da queda da Samaria (721): Amós (± 780) e
Oseias (± 760).
b) em Judá (Reino do
Sul):
- antes do exílio na Babilônia (até 586 aC): Isaías
de Jerusalém (740-701); Miqueias (727-701); Sofonias (± 630); Jeremias
(627-586); Naum (± 612 ?); Habacuc (± 600) e a primeira parte da pregação
de Ezequiel (593-587).
- durante o exílio na Babilônia (entre 586 e 539): a
segunda parte da pregação de Ezequiel (587-571) e o Segundo Isaías
(550-539)
- após o exílio, em Jerusalém, nos primeiros anos da
reconstrução (537 em diante): o Terceiro Isaías (538-510), Ageu (±520) e
Zacarias 1-8 (±520)
Há também profetas e
livros proféticos de datação incerta, alguns provavelmente do período
helenista: Malaquias, Zacarias 9-14, Abdias, Joel, Jonas, Baruc e Daniel.
7 Antigo
Testamento e Palavra de Deus
Para os cristãos,
Cristo é a plenitude da revelação de Deus; em outras palavras, Cristo é a
perfeita manifestação de Deus e nele, portanto, a revelação encontra seu
cumprimento. A leitura cristã das Escrituras adotou esquemas substancialmente
bíblicos para exprimir a relação entre os dois Testamentos, de modo a afirmar
que o Novo termina o que o Antigo tinha começado. Tais esquemas são:
- continuidade e descontinuidade (novidade);
- preparação e cumprimento;
- figura e realidade;
- promessa e realização.
Todavia, é um grave
erro (heresia) afirmar que o Antigo Testamento só tem valor em função do Novo,
ou que o Antigo é Palavra de Deus apenas porque é legitimado, completado e
corrigido pelo Novo. Não!
O Antigo Testamento
vale por si mesmo e é Palavra de Deus tanto quanto o Novo. Em outras palavras,
o Antigo Testamento não depende do Novo para ser Palavra de Deus e não é,
em hipótese alguma, substituído pelo Novo. Ao contrário, o Novo se enraíza no
Antigo, de tal modo que é necessário conhecer muito do Antigo Testamento para compreender
um pouco do Novo!
Cássio Murilo Dias da
Silva, PUC RS, Brasil. Texto
original português.
8 Referências
bibliográficas
GUIJARRO OPORTO,
Santiago; SALVADOR GARCÍA, Miguel (eds.). Comentário ao Antigo
Testamento. 2v. 3.ed. São Paulo: Ave Maria, 2009.
RÖMER, Thomas; MACCHI, Jean-Daniel;
NIHAN, Christophe (orgs.). Antigo Testamento – história, escritura e teologia. São Paulo, Loyola, 2010.
ZENGER, Erich et
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Bíblica Loyola, 36.
Para saber mais
CARMODY, Timothy
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Loyola, 2008.
CHARPENTIER,
Étienne. Para ler o Antigo Testamento. São Paulo: Paulus, 1986.
Entender a Bíblia.
DRANE, John
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HARRINGTON, Wilfrid
J. Chave para a Bíblia. 8.ed. São Paulo: Paulus, 1997.
Biblioteca de Estudos Bíblicos.
SCHMID, Konrad. História
da literatura do Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2013. Bíblica
Loyola, 65).
[1] Na Bíblia
Hebraica, o livro de Rute pertence ao conjunto de livros denominados
“Meguillot”, e está no terceiro bloco de livros, isto é, nos Escritos.
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