sábado, 6 de março de 2021

Comer da Terra sem devorar o Mundo - vontades coletivas, políticas desejadas e espiritualidades radicais




1-Na pandemia a terra não descansou!

Num documento assinado por mais de 300 organizações de proteção de direitos humanos e da terra a afirmação principal é: o setor da mineração continuou mantendo sua atividade e seus lucros apesar da pandemia.

1.      as corporações mineradoras decidiram ignorar as ameaças reais da pandemia e continuam operando, usando todos os meios disponíveis (…) para classificar a mineração como "um serviço essencial";

2.      Governos  e empresas de todo o mundo estão tomando medidas extraordinárias para silenciar protestos legítimos (…)

3.      As empresas mineradoras estão usando a pandemia como uma oportunidade para encobrir seu histórico sujo de destruição (…)

4.      Governos e políticos estão garantindo mudanças regulatórias - suspendendo a pouca supervisão e monitoramento ambiental [1];

 

A terra não descansou… ao contrário!

 

O Agronegócio cresce durante a pandemia e fica mais atraente. O setor brasileiro se destacou em meio à recuperação econômica e durante a crise da COVID-19. Câmbio valorizado e capacidade de exportação tornam as empresas brasileiras do agronegócio mais atraentes para os investidores estrangeiros.[2]

 

A finaceirização da natureza não somente lucra com a pandemia mas faz parte do metabolismo de produção da pandemia: que setores como a mineração e agricultura extensiva e intensiva não tenham parado com a pandemia mas tenham ampliado sua capacidade política e conômica representa uma normatização da enfermidade global e sua banalização:

Na América Latina, o novo epicentro da pandemia, a destruição foi particularmente grave. Com a economia global praticamente parada, o agronegócio na região continuou funcionando com total impunidade, aprofundando seu impacto e os danos que causa a comunidades e ecossistemas.[3]

 

Movimentos camponeses, indígenas, comunidades tradicionais e organizaçoes ambientais em todo o mundo denunciam (1) o oportunismo dos setores extrativistas em assegurar lucros e proteger negócios sem considerar a necessidade de repensar o modelo global de trânsito de commodities e os impactos na precarização da saúde pública; (2) a negligencia dos governos na manutenção das estratégicas reservas públicas de alimentos num quadro de agravamento da fome a nível global.

O coronavírus pode levar o mundo a outra “pandemia”: (…) A fome no mundo deve mais do que dobrar em 2020, segundo a ONU (World Food Programme). A alta global dos preços é reflexo de como o coronavírus intensificou a disputa por comida.[4]

 


Assim, se houve um time-out forçado e global não funcionou do mesmo modo para toda a sociedade e muito menos para a Terra - o planeta – e os Territórios – lugar de vida das comunidades: a terra continuou sendo explorada de modo extensivo e intensivo.

O time-out que precisamos NÃO pode se referir ou se reduzir a um acidente, um destino não planejado, uma reação forçada por agentes externos. A pausa, o descanso e o sossego  que precisamos experimentar – tanto no corpo pessoal, como no corpo social e no corpo do mundo – precisa ser fruto de vontades coletivas, políticas desejadas e espiritualidades radicais.

Porque não será uma concessão ou um acaso inesperado, precisamos também de time-out com os significados de quebra, ruptura, fratura como expressão política, cultural e espiritual de uma vontade coletiva, de acordos plurais das maiorias de interromper a boca dentada do capitalismo.

 

https://diplomatique.org.br/edicao/edicao-162/

2-Sábado: vontades coletivas, políticas desejadas e espiritualidades radicais

A tradição bíblica poderia contribuir nesta busca e criação de um “tempo de descanso”. Nas palavras do agora saudoso biblista latino-americano Milton Schwantes:

Para uma vida digna em meio aos jardins criados por Deus, é preciso “viver de modo sabático”. Ao se descansar abrem-se as janelas de novos mundos, para a sociedade, a fim de se superar a espoliação de pessoas e animais.

 

Uma leitura bíblica atenta e motivada pelas resistência e alternativas dos povos da terra - camponeses, indígenas, comunidades tradicionais – tem sido importante na recuperação horizonte camponês da literatura bíblica[5] – em disputa com a ritualização do Templo e o controle do Estado[6].

A criação no Gênesis bíblico é um processo criativo que estabelece ciclos e alternâncias, contrários e simultaneidades que apontam necessariamente para o descanso: em Gênesis (1.1-2, 4) a própria criação efetiva o sábado como descanso; aliás, ele é parte da própria criação. É partilhado pelo Deus criador e por suas criaturas, pessoas e animais.[7]

Deus descansa não como resultado ou fim do processo criativo: o descanso é parte do processo, dinâmica essencial da criação recriando-se continuamente. Uma demarcação de tempo que recria o espaço: e Deus viu que tudo era bom. Este tempo de descanso é o lugar da contemplação do processo criado e em criação, é a qualidade de tempo interrompido que permite avaliar a qualidade do espaço e garantir não só seu funcionamento mas também sua “bondade”, sua capacidade criativa de fazer o que é bom. O Sábado não serve para nada… a não ser este respiro vital para seguir criando.

            Aqui se revela a noção de que a criação é o espaço de vida para todos os elementos do universo e que, além da necessidade de intervenção constante no ambiente, há a necessidade de tempos de pausa, de descanso, de ócio. Um famoso pensador judeu se expressou dizendo que o “sábado da criação abre o mundo para a eternidade”.[8]

 

A provável origem do sabbath a partir da cultura agro-pastoralista cananéia[9] ajuda a estabeler relações com a vida cotidiana e seus modos de “fazer e viver” em que os momentos de trabalho coletivo precisavam de uma interrupção criativa como parte do processo de reprodução da vida do grupo humano, dos animais e da vegetação. Esta prática de vida na terra e com a terra se expressa na “guarda” do sábado, na separação de um dia em que tudo suspende seus afazeres e contempla, e nomeia: é bom! Este descanso é também criador da teologia, isto é, deixa espaço para que a comunidade celebre na terra e com a terra a motivação e ordem criadora da vida. Neste sentido, o descanso não só é parte da criação, mas o descanso cria Deus; esta pausa intencional, que recria as condições de vida,  cria o espaço da celebração e da nomeação do sagrado na terra e na vida. Não cumprir com este pausa significa morte.

"Em seis dias façam os seus trabalhos, mas no sétimo cessarás para que o seu boi e o seu jumento possam descansar (yanûaj), e o seu escravo e o estrangeiro renovem as forças (yinnafeš).” Êxodo 23, 12

"Trabalhe seis dias, mas descanse (tišbot); no sétimo; tanto na época de arar como na da colheita.” Êxodo 34:21

Em seis dias se fará todo o trabalho, mas o sétimo dia lhes será santo, um sábado de descanso consagrado ao Senhor (šabat šabbatôn leyahveh); todo aquele que nele fizer qualquer trabalho morrerá. Êxodo 35:2

 

 

3-Espiritualidade e mecanismos sociais de descanso: de sábados e jubileus

 

Existe uma insistência na dimensão necessária do descanso em diferentes escalas de tempo: o sábado na organização da semana e o sábado na organização do calenário ampliado na forma do ano sabático:

Também seis anos semearás tua terra, e recolherás os seus frutos;

Mas ao sétimo a dispensarás e deixarás descansar, para que possam comer os pobres do teu povo, e da sobra comam os animais do campo. Assim farás com a tua vinha e com o teu olival. Êxodo 23:10 e 11

 

O ano sabático recria a pausa semanal em escala ampliada; no final de sete anos, por todo um ano, a terra descansa porque os campos são deixados sem cultivo, mas também para se cuidar dos pobres e dos animais, para remissão das dívidas e para os escravos israelitas serem libertos como no Deuteronômio 15:

v. 1-3: perdão de dívidas a cada 7 anos.

v. 4-6: se o povo ouvir a Palavra de Deus, não haverá pobres.

v. 7-11: se há pessoas pobres, você deve emprestar-lhes

v. 12-18: sobre a libertação dos escravos[10]

 

O mesmo vai se dar em escala ampliada de 50 anos (7 X 7) com o ano Jubileu no Levítico 25:

v. 8-22: “Eles declararão santo o ano 50 e proclamarão a libertação na terra para todos os seus habitantes. Será um Jubileu para vocês: cada um recuperará sua propriedade e cada um retornará à sua família” (v.10).

Consequências da santidade destes anos: v. 23-55

a) resgate de propriedades: v.23-34

a terra: v.23-28

a casa: v.29-34

b) resgate de escravos: v.35-55

 

O sábado é sabedoria dos povos na relação com a terra, fruto da convivência e dos saberes da necessidade de não exaurir, não extenuar, não esgotar a capacidade recriadora: comer da terra sem devorar o mundo!

O sábado em suas diversas escalas temporais responde a dois desafios básicos: a necessidade de entender as necessidades da terra e a capacidade de criar mecanismos de resolução das desigualdades sociais. Neste sentido, os textos bíblicos precisam ser lidos a partir do chão, da terra, da agricultura e suas espiritualidade. A agricultura é parte de um conjunto de conhecimentos estabelecidos e metabolizados por grupos sociais na relação com a natureza. Este corpo de conhecimentos é constituído pelas formas de trabalho, de lazer, de mística, de produção de valor e de encantamento que são muito mais complexas que somente os processos de produção, distribuição e consumo.

 



Desafio pós-pandemia: os direitos da natureza e soberania alimentar

A pandemia do COVID 19 veio para ficar. Mesmo com as respostas sanitárias e vacinas possíveis a realidade dos excessos do capitalismo como exaustão das condições de vida no planeta veio para ficar e precisam ser enfrentadas.  As vontades coletivas e as políticas desejadas para este novo tempo exigem de nós rupturas com os ciclos de doença e lucro e também a busca de espiritualidades radicais que afirmem o direitos da natureza[1]. Reconhecer os Direitos da Natureza, significa passar de uma abordagem antropocêntrica a uma sociobiocêntrica com o objetivo de ampliar o entendimento de Direitos Humanos com novas gerações de direitos, neste caso os Direitos da Natureza, como parte da emancipação permanente dos povos[2].

“A Natureza tem muito a dizer, e já está na hora de nós, seus filhos, não continuarmos a nos fazer de surdos. E talvez até Deus escute o apelo que ressoa a partir deste país andino – o Equador – e acrescente um décimo primeiro mandamento que foi esquecido nas instruções que nos deu no Monte Sinai: ‘Amarás a Natureza, da qual fazes parte’”. [3]

O outro desafio vital é este de manter as panelas, os pratos e os corpos num diálogo constante. Fazer política de corpo e território. Em todo o mundo os movimentos camponeses e populares, em espacial de mulheres, entenderam o estrangulamento das condições de reprodução da vida, as ameaças sanitárias e o aumento da desigualdade social provocando caos e fome. As cozinhas comunitárias, os mutirões de vizinhança, a distribuição de alimento ligando campo-cidade são os materiais mais preciosos da solidariedade necessária para defender a vida das comunidades pobres, resgatar valores de humanidade e de luta classista: é amor!

Nancy Cardoso

Universidade Metodista de Angola



[1] ACOSTA, Por uma Declaração Universal dos Direitos da Natureza. Reflexões para a ação,  https://www.ecodebate.com.br/2011/03/31/por-uma-declaracao-universal-dos-direitos-da-natureza-reflexoes-para-a-acao-artigo-de-alberto-acosta/ (acesso 6/1/2021)

[2] NACIONES UNIDAS, ASAMBLEA GENERAL, Armonía con la Naturaleza, Informe del Secretario General, 2018, https://undocs.org/pdf?symbol=es/A/73/221 (acesso 8/1/2021)


 

Nancy Cardoso

Universidade Metodista de Angola



[2] CARRIERI, Agribusiness grows in pandemic, becomes more attractive, https://anba.com.br/en/agribusiness-grows-in-pandemic-becomes-more-attractive/ (acesso 6/1/2021)

[3] BOLETIM WRM, Agroimperialismo em tempos de Covid-19, 17 jul, 2020, https://wrm.org.uy/pt/artigos-do-boletim-do-wrm/secao1/agroimperialismo-em-tempos-de-covid-19/ (acesso 6/1/2021)

[4] RIVEIRA, Carolina, O coronavírus pode levar o mundo a outra “pandemia”: o aumento da fome, 13 set 2020, https://exame.com/mundo/o-coronavirus-pode-levar-o-mundo-a-outra-pandemia-o-aumento-da-fome/, (acesso 6/1/2021)

[5] MANSILLA, Sandra Nancy (org), RIBLA (Revista de Interpretação Bíblica Latino Americana), n. 80. 2019, https://www.metodista.br/revistas/revistas-metodista/index.php/Ribla/issue/view/519/showToc (acesso 8/1/2021); CARDOSO, VALENTIM, CARRIJO VIANA. BERNARDI (orgs.), Memória, Rebeldia e Esperança: dos pobres da terra e da Bíblia, 2015, São Leopoldo, CEBI

[6] RICHARD, Ya es tiempo de proclamar un jubileo, RIBLA n.33, 1999, https://www.centrobiblicoquito.org/images/ribla/33.pdf (acesso 6/1/2021); GALLAZZI, Jubileo: ¡Aquí y Ahora!, RIBLA n.33, 1999, https://www.centrobiblicoquito.org/images/ribla/33.pdf (acesso7/1/2021)

[7] SCHWANTES, op.cit.

[8] REIMER, A terra, os pobres, os animais: uma visão ecológica da vida (entrevista), out 2010, http://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/3565-haroldo-reimer-1 (acesso 7/1/2021)

[9] PROSIC, Annual Festivals in the Hebrew Bible I: Theoretical and Methodological Concerns, December 2010, Religion Compass 4(12), https://www.researchgate.net/publication/264412643_Annual_Festivals_in_the_Hebrew_Bible_I_Theoretical_and_Methodological_Concerns (acesso 6/1/2021)

[10] RIBLA n. 33, JUBILEO, 1999, https://www.centrobiblicoquito.org/images/ribla/33.pdf (acesso 9/1/2021)

[11] ACOSTA, Por uma Declaração Universal dos Direitos da Natureza. Reflexões para a ação,  https://www.ecodebate.com.br/2011/03/31/por-uma-declaracao-universal-dos-direitos-da-natureza-reflexoes-para-a-acao-artigo-de-alberto-acosta/ (acesso 6/1/2021)

[12] NACIONES UNIDAS, ASAMBLEA GENERAL, Armonía con la Naturaleza, Informe del Secretario General, 2018, https://undocs.org/pdf?symbol=es/A/73/221 (acesso 8/1/2021)

[13]GALEANO, Eduardo, A natureza não é muda, https://appsindicato.org.br/?p=11998/#:~:text=E%20talvez%20at%C3%A9%20Deus%20escute,%2C%20da%20qual%20fazes%20parte'.&text=Durante%20milhares%20de%20anos%2C%20quase,direito%20de%20n%C3%A3o%20ter%20direitos (acesso 9/1/2021) 

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